Maria da Conceição Nobre
Acordar muito cedo nunca foi minha praia, onde sempre cheguei depois das dez. Os cuidadosos do sol me recriminavam, mas os boêmios eram capazes de entender. Não se mistura sol com boemia.
Pois é, mas nesse dia, enfrentei o que foi preciso e meio adivinhando, porque sou uma eterna estrangeira por aqui, cheguei ao Bonfim, onde iria encontrar minha colega Luciana. Paro o carro em frente à igreja e fico completamente fascinada, capturada pela cor do mar, já pensando que deve ser incrível morar nesta beleza. Luciana chega me fazendo retornar ao real.
A caminho da escola, me preparo para encontrar crianças, uma alegria básica, porque adoro aquela conversinha.
- Tia...
- Olhe bem, não sou tia, sou Conceição a psicóloga que veio trabalhar com vocês hoje ...
- Conceição,... A garotinha parece testar pra saber se pode mesmo me chamar pelo nome, ou se vai ter que acrescentar algum dona, senhora, ou lá o que seja, que as crianças são obrigadas a usar para distinguir alguma autoridade, ... eu posso beber água?
Claro que pode.
Contento-me em esperar, água, banheiro, aproveitando pra distribuir o material, papel, lápis, borracha, e os lugares de forma que cada um possa estar concentrado em seu próprio trabalho. Têm em torno de sete, oito anos. Respondidas às demandas, inicio explicando que eles devem responder à pergunta: O que você mais gosta de fazer?
Muitas respostas que escrevo no quadro, sorvete, merenda, guaraná, passear, ir à praia...
- Então vocês devem desenhar, em dez minutos, todas essas coisas que vocês gostam de fazer.
Passados os dez minutos, recolho os desenhos e inicio a segunda etapa da pesquisa. O que vocês não gostam?
Não gosto de comer fruta, não gosto quando minha mãe me bate; e eu não gosto quando meu pai me bate porque ele bate forte e põe a arma na minha cabeça; não gosto quando meu pai bate na minha mãe, ontem eu descontei e bati nele.
Solicito que desenhem todas essas coisas que não gostam. Enquanto aguardo, fico com a palavra que a garotinha usou: descontei. Des contei, ou seja, retirei das coisas que eu conto, parei de contar, apaguei. Quando ela devolve a agressão está se impedindo de ver o que faz esse pai, está tentando parar de contar, des contar o que acontece na sua família. A criança agredida com a ameaça de um revolver desenha o que aconteceu, mas não quer falar sobre o fato. Não precisa. Está dito, desenhado, posto.
Uma bela manhã, novo encontro no Bonfim. Estranho o nome da escola - Castelo Branco - homenagem ao presidente que deu início a um dos mais terríveis períodos da história de nosso país. Mas só para lembrar que a vida é feita de paradoxos, a estrutura da escola é muito boa e a professora fantástica. Sala grande, arejada, as carteiras separadas. Nada precisa ser alterado para realizar o trabalho. A professora fez um cantinho da leitura onde todas as semanas os livros circulam, os hábitos de higiene são escritos numa cartolina com as frases e as letrinhas de cada um, revelando que entenderam e por que tal hábito deve ser assimilado. Uma árvore enfeita um grande quadro de cortiça, nos galhos o nome de cada aluno, tendo ao lado um desenho que o representa. Uma das crianças, inquieta, não ouve as regras do trabalho. Mas diz que não gosta de apanhar nem de ver as pessoas apanhando. Que pessoas? Todas. Como é isso; todas? A criança explica que em casa, ele, a mãe, os irmãos apanham, então vai pra casa da tia, onde também apanham todos, o que o impede de entender o que são regras, o que é possível e o que não é possível, porque todos apanham quando o pai bebe, ou simplesmente quando ele quer bater. As surras estão associadas ao bem estar do adulto que é perturbado de alguma forma, quando quer dormir e as crianças fazem barulho ou quando os pequenos não cumprem o que lhes é ordenado com a presteza e a perfeição exigidas.
A primeira escola particular deste trabalho é grande, bem arrumada, me aguarda uma sala de crianças um pouco mais velhas que as dos grupos anteriores, entre dez e onze anos. Logo no início sou surpreendida por uma das participantes que ao ser perguntada sobre o que mais gosta responde: “gosto de bater” e explica que seu pai a tranca no quarto e bate muito. Neste grupo apenas uma criança não apanha, mas segundo ela, a irmã mais nova apanha bastante, e por nada. A conversa flui com a turma, elas falam sobre o que gostam o que não gostam, o que é apanhar, acabando por dizer que preferem apanhar a ficar de castigo.
__ É mesmo? Mas, por quê?
__ Porque quando ficamos de castigo sempre perdemos as coisas que gostamos de fazer; perdemos o que mais gostamos; a televisão, ou sair de casa, ou o vídeo game. Apanhar dói naquele momento e depois passa.
__ Mas, e o que vocês perdem quando apanham?
Uma das meninas responde com a incrível frase: __ quando a gente apanha perde a coragem e ganha a raiva.
Saio da escola marcada por estas palavras.
De minha experiência no trabalho com crianças, concluo que bater é um abuso uma situação que paralisa a criança. Da mesma maneira que na fase de latência (fase antes da puberdade), não está preparada para a sexualidade genital, pois seu corpo é ainda imaturo, a criança também não tem preparo emocional para defender-se de atos de crueldade. A pergunta que se impõe é: o que acontece com a criança? Penso que ela se distancia do entendimento das regras sociais, da solidariedade humana, da compaixão, ficando como que viciada nestes confrontos cruéis. Observamos que levam para a escola os hábitos de maltrato, batendo nos colegas e utilizando a violência para resolver as questões.
Quando uma criança é surrada o que está em questão não é apenas o castigo físico. A raiva e o descontentamento do adulto com sua própria vida são elementos que fazem irromper a violência de uma forma muito mais contundente do que o que quer que a criança tenha feito.
O castigo físico fere muito além do corpo. As surras levam, de enxurrada, tudo que necessita de coragem pra ser feito.
Maria da Conceição Nobre – psicóloga e psicanalista, coordenadora da Pesquisa O que eles não Gostam Projeto Proteger - Salvador /Bahia
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